Ah, o sítio Boa Vista, que pertenceu ao meu avô, Primo Martini. Era razoavelmente próximo da cidade (ficava há uns 12 km de Rio Claro/SP e há uns 3 km do distrito de Ajapí – antigo Morro Grande), onde tudo era lindo e cheirava gostoso, apesar da simplicidade e da “terra ruim”, como dizia meu avô. Há bem mais de quarenta anos atrás a energia elétrica não tinha chegado por lá. Tinha apenas em um sítio vizinho, pelo que me lembro. Nas noites de lua cheia é quando o sítio e as estradas das cercanias ficavam iluminados. Essa era a única luz que tinha nas noites escuras. Na casa do sítio era apenas a luz de velas, do fogão a lenha e de lamparinas – que para quem não conheceu vou descrever – a lamparina podia ser feita de latão, vidro ou lata mesmo, com um pavio de corda que conduzia o querosene de dentro da lamparina para fora e podia ficar acesa a noite toda. O problema é que quando estava acesa soltava uma fumaça preta que deixava marcas pelas paredes e teto, e o nariz que ficava preto por dentro.

A estação de Morro Grande (Ajapí), provavelmente anos 1940. Foto do site http://www.estacoesferroviarias.com.br, e cedida por Julio Cesar Piesigilli, Jaú, SP.
Na frente da casa e nas laterais tinha um jardim muito bem cuidado pela minha avó. Também perto de onde ficava o poço caipira tinha uma horta e mais flores. Para chegar até a casa tinha dois caminhos nos quais podiam passar carroças e carros (não tão comuns naquela época!). Um dos caminhos é o que passava antes pelo poço, que ficava à esquerda e a casa ficava numa baixada. O outro caminho começava na escolinha rural – que era composta de uma sala de aula em terreno cedido pelo meu avô e onde as crianças da região aprendiam as primeiras letras. A professora vinha todos os dias e no período da manhã. Para chegar ao sítio de meu avô haviam duas possibilidades: de jardineira, a qual nos deixava em um entroncamento da estrada de terra que liga Ajapí a Ferraz e onde se inicia a estrada para o Haras e Fazenda São José do Morro Grande e de lá íamos a pé ou meu e tios iam nos buscar de carroça ou charrete. O outro meio era chegar de maria fumaça até a estão de trem de Morro Grande, o que complicava um pouco, pois ficava mais longe para irem nos buscar. Apesar de que, nos anos 60 essa linha foi desativada*.
Mas tinham outros caminhos para se chegar até a casa, os quais chamávamos de trilho. Geralmente eram caminhos marcados pelo gado e que a gente aproveita para andar por eles. Da casa de meu avô, muito ao longe e a noite, via-se a claridade que emanava da cidade de Corumbataí e do distrito de Ferraz.
A casa de minha avó tinha duas cozinhas – uma era a dela e a outra da minha tia Leonor. Mas das duas e em frente à porta das cozinhas, alguns metros para baixo, ficava o terreiro de secar café e logo abaixo o paiol, um cômodo para guardar a colheita (batatas, arroz, feijão, ferramentas), e sempre cheiinho de milho, já seco, usado para alimentar as galinhas e porcos. Do lado do paiol ficava tinha uma espécie de tanque de tijolos e bem rasinho, cheio de água para as galinhas beberem.
Do lado direito do terreiro de café ficavam os chiqueiros dos porcos e os galinheiros. E do lado esquerdo ficava o curral das vacas.
Eu e minhas irmãs, se quiséssemos, podíamos passar parte de nossas férias por lá. Eu, por ser o caçula, tentei ficar várias vezes, mas chorava e tinha que voltar para a cidade e para perto de minha mãe.
Nos fundos das terras do sítio tinha a “Gruta do Índio”, na qual só podíamos ir acompanhados de um adulto. Tenho guardada até hoje uma ponta de flecha feita de rocha a qual encontrei por lá. Essa “gruta” era uma escavação em um barranco bem alto e de onde minava água. Era um local bem úmido e cheio de vegetação. Nunca soube se aquilo realmente foi um lugar habitado por indígenas. Mas a lenda que corria a boca solta pela região dizia ser verdade.
No sítio de meu avô não passava nenhum rio. Apenas uma nascente a qual tinha um pequeno volume de água e onde o gado insistia em pisotear, apesar dos constantes consertos que meu avô e tios faziam no cercado. Adorávamos brincar naquela água e em suas pequenas ilhas – o leito já quase todo assoreado por areia ou piçarras dividiam o curso da água em dois ou três e a essas manchas de terras em meio a água dávamos o nome de “ilhas”.
A noite sentávamos perto do fogão de lenha ou no alpendre, a luz de lamparinas – e ali ficávamos horas ouvindo minha avó, avô e tios contarem histórias de assombrações e fantasmas, de bruxas e fadas, coisas que eles ouviram também dos avós deles. E isso sempre com três ou quatro lamparinas acesas e as brasas fumegantes do fogão de lenha e uma bacia de pipocas. Mas tudo isso só acontecia depois de rezarmos o terço. Muitas vezes minha avó cantava canções religiosas ou mesmo o “Terezinha de Jesus”, e várias outras cantigas lindas. As vezes as pipocas eram substituídas por arroz-doce, pudim de pão, broa de milho ou batata-doce.
No próximo post relembrarei um pouco mais desse tempo inesquecível e do qual tenho muitas saudades.
* HISTORICO DA LINHA: O trecho entre Rio Claro e São Carlos que passava pelo Cuzcuzeiro foi aberto pela Cia. Rio-Clarense em 1884, e fazia parte de sua linha principal, de bitola métrica. Comprada pelos ingleses que formaram a Rio Claro Railway em 1888, esta foi vendida para a Cia. Paulista em 1892, que ficou com a linha, que então chegava até Araraquara e foi renomeada como Secção Rio Claro. Em 1916, a Paulista prolongou a linha para a frente de Rio Claro com bitola larga, até São Carlos, mas aproveitando somente o leito a partir de quinhentos metros à frente da estação original de Visconde de Rio Claro. Com isto, o trecho entre a estação de Bifurcação (mais tarde Visconde de Rio Claro-nova) e o início, em Rio Claro, ficou reduzido a uma variante de bitola métrica, chamada a partir de 1922 de ramal de Anápolis, nome que em 1944 veio a se tornar ramal de Analândia. Antes disso, em fins de 1940, o trecho entre Anápolis e Visconde-nova foi suprimido e o ramal passou a parar em Anápolis. Em 01/09/1966, o tráfego no ramal foi extinto e os trilhos, logo a seguir, retirados. Fonte: www.estacoesferroviarias.com.br
Gosto muito de ler as doces lembranças de sua infância. Também me vem a memória da minha, cheia de peraltices e brincadeiras com a primarada no sítio de meu avô, município do Eusébio/Ceará.
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Comentário por Nora Pires — setembro 26, 2016 @ 16:46 |
Oi Nora, boa tarde! Agradeço sua visita ao blog. Nossa infância foi feliz, não é mesmo? Longe das tecnologias de hoje e muito mais saudáveis! Um abraço. Augusto
Em 26 de setembro de 2016 16:46, A Simplicidade das Coisas — Augusto
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Comentário por Augusto Martini — setembro 26, 2016 @ 16:53 |