Meu pai era um operário que fazia trabalho pesado, mas antes disso foi agricultor. Acho que posso classificá-lo como um pouco bruto em seu modo de ser. Mas como dizem, “os brutos também amam”. Apesar da dificuldade que tinha em expressar o seu amor, era portador de um coração doce, enorme e aparentemente entre mim e minhas duas irmãs não tinha um filho preferido, como deve ser com todos os pais.
Comia muito mal e em quantidade, mas com gosto. Adorava carnes de panela bem gordas, muita manteiga ou margarina no pão, toras de mortadela, tigelas grandes de doces de abóbora, banana etc., torresmos e um sem-fim de tranqueiras. Mas não foi por conta de doença cardíaca que morreu. Acho que essa fome desmensurada foi por conta da infância e juventude que teve e as dificuldades que passou. Tinha mania de fazer estoque de alimentos não perecíveis. A cozinha era o maior cômodo da casa e em um dos cantos havia um enorme baú de madeira onde ficavam acondicionados dezenas de quilos de arroz, feijão, trigo, açúcar, sal, latas de óleo, margarina… Quando ficava sabendo que em dito supermercado havia um produto em promoção ia até lá e comprava o tanto que o dinheiro que tinha no bolso dava para comprar.
Meu pai, Antonio Martini, era um ecologista nato
Me lembro claramente da sensação de que eu tinha vendo-o comer. Dava gosto de vê-lo comer com tanto prazer. Minha mãe é quem preparava o prato. Prato fundo. Montanha de arroz com feijão e sobre ele a “mistura do dia”. A comida tinha que estar morna e ao lado do prato sua colher de estimação. Sim, ele comia de colher e tinha que ser a colher dele. Era raro ele aceitar um convite de almoço na casa de parentes ou amigos. Mas, quando ia, a colher o acompanhava, no bolso. Mesmo ainda criança, eu acho que percebia que aquela fome não era só de comida. Se fosse, ele já estaria satisfeito com três sanduíches de pão com mortadela. Mas ele chegava a devorar dez, doze de uma só vez… Dizia: “Maria, hoje não vou jantar. Vou comer pão com mortadela”. Tive que viver algumas décadas ainda para entender os vários tipos de fome das pessoas em suas tentativas de compensações.
Não sei… se a vida é curta ou longa demais para nós. Mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silêncio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que sacia, amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo: é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira e pura… enquanto durar. (Saber viver, de Cora Coralina)
Lembro-me dos quintais das casas que vivi minha infância e adolescência e boa parte da vida adulta. Lembro-me daqueles dias e de como eles pareciam ser longos, infindáveis, pareciam que iriam durar para sempre. E hoje os dias parecem tão curtos! Será que conforme crescemos os dias encolhem?
Eu adorava andar pelo quintal, sentir o cheiro das plantas, “roubar” uma laranja ainda por amadurecer, retirar uma cenoura da terra, lavar e comer, observando os pássaros. Ver as rainhas margaridas plantadas por minha avó, as rosas, as cravinas, as dálias…
O amor que tenho pelas plantas em geral é parte da herança que recebi da minha avó paterna, dos meus pais e dos meus tios-sitiantes. Não consigo pensar neles sem associá-los a natureza. Meu pai gostava de pescar, caminhar, andar de bicicleta, plantar árvores, verduras e legumes, ervas e flores, que serviam para alegrar a alma, curar o corpo e levar para longe as dores.
E qual era o lugar preferido de minha avó e de meu pai? Se alguém quisesse encontrá-los, era só procurar no quintal. Lá estavam eles mergulhados numa profusão de cores. Minha avó valorizava cada flor como se fosse uma joia rara, suas plantas eram o seu maior tesouro. Sempre tinha novas espécies, em mudas que eram trocadas com vizinhos, amigos ou parentes. E ela sempre usava um lenço na cabeça e um avental. Na hora do almoço, as refeições eram servidas com verduras frescas que sempre vinham do quintal – plantadas por ela e por meu pai. Com eles aprendi a ouvir o canto dos pássaros, a contar estrelas, a distinguir de olho fechado o perfume de cada flor e a reconhecer espécies de árvores. Aprendi usar ervas para curar, a tomar chá, a plantar e colher. Há muitos anos ela e meu pai se foram, mas continuam presentes no meu quintal da casa que mantenho em Rio Claro, e nas plantas que tenho nos vasos e floreiras do apartamento.
Comecei a escrever esse texto saudoso por um fato que me deixou emocionado dias atrás e fez-me pensar ainda mais em meus antepassados. Estava em Rio Claro e passei na casa de minha irmã mais velha, a Tereza, (minhas duas irmãs moram no bairro Vila Nova) que me levou para conhecer as plantas de D. Cidinha, uma de suas vizinhas que mora quase em frente de sua casa, que fará 86 anos no próximo outubro.
Ela vive sozinha por opção, com seus bichos (cão, gato, calopsita), em uma casinha simples e aconchegante, que na frete tem um pequeno quintal com o piso todo cimentado. Mas ali é o pequeno paraíso daquela simpática senhora. Suas flores estão plantadas em baldes, velhas caixas d´água, caixotes, pequenos canteiros feitos com tijolos, elevados do chão. Duas vigorosas trepadeiras Jade – uma azul e a outra vermelha, correm sobre um caramanchão feito com canos plásticos, madeira, arames, todos confeccionados e trançados por ela. Uma trama de arame, também feito por ela, serve de tutor para outra trepadeira plantada em uma caixa de água.
O que é espiritualidade para você? Para mim é poder fazer a conexão com algo maior do que a mim mesmo. E isso envolve também a procura por um sentido na vida, que pode ser uma busca particular, seja com um Deus, com vários Deuses, com alguma experiência transcendental, com alguma força da natureza, com o seu EU interior e tantas outras coisas.
Fui criado na fé católica. Sou batizado e crismado, mas acredito que somos permeados por várias formas de energia. Se existe o bem, o mal também existe. E por que comecei a escrever esse post? Simplesmente porque hoje acordei lembrando de minha infância e das histórias de terror que meu avô, meus tios e pai contavam.
Meu avô, Primo Martini, com minha avô, Virgínia Rosin Calore Martini, em sua primeira foto juntos, na saída da missa em Morro Grande, quando começaram a namorar.
No final dos anos 60 e início dos anos 70, em casa de minha avó, no sítio que a família Martini tinha nas proximidades de Morro Grande (hoje Ajapi, distrito rural de Rio Claro/SP) não havia energia elétrica. As noites eram iluminadas por velas, pela lua cheia ou lamparinas de querosene. Depois do horário da janta tinha a reza do terço e depois do terço as “contações” de histórias, acompanhadas por uma baciada de pipocas quentinhas, por uma xícara de chá e por muito medo. Mas adorávamos tudo aquilo, apesar desses “causos” assombrarem o nosso sono. E, independente do conceito, de acreditar ou não, é possível perceber, dentre outras coisas, a força que essas histórias exerceram na minha vida e nos meus caminhos e igualmente nos caminhos de minhas irmãs e primos.
A história a seguir vem sendo passada de geração em geração. Meu bisavô contava ao meu avô, que contou ao meu pai e assim por diante. Então “senta que lá vem história”!
Antigamente, as famílias tinham muitos filhos. Mas havia uma grande preocupação quando nasciam sete homens. Nesse caso, o primogênito tinha que batizar o caçula, para evitar que o mais velho virasse lobisomem. Assim também era feito com a filha mais velha, para que não virasse bruxa.
Meu avô contava que lá por aquelas bandas, na Mata Negra, aconteceu o casamento de uma jovem que, depois de casada, teve seu primeiro filho e, juntamente com seu marido, ia sempre visitar seus pais nas noites de sexta-feira. Certa feita, no caminho, o marido disse que precisava ir no mato fazer necessidades e pediu à esposa que o esperasse ali. A moça ficou esperando com o bebê no colo e este estava coberto com uma manta de lã vermelha, que tinha um trançado, tipo crochê, nas extremidades. De repente, apareceu do nada um cachorro grande, peludo, com os olhos vermelhos que pulou na moça para tomar a criança de seu colo e abocanhou a barra da manta. Desesperada, ela subiu na porteira para proteger o bebê e a si mesma. Gritou pela proteção de Nossa Senhora Aparecida e para o Anjo da Guarda guardar o seu bebê, fez o sinal da cruz e, neste momento, o cachorro foi embora. Após alguns instantes, o marido voltou e a esposa contou-lhe o que havia acontecido. Tranquilo, ele disse que era algum cachorro bravo ali do sítio por onde passavam e que cão de guarda age assim mesmo. E continuaram a caminhada. No outro dia, após o almoço na casa dos pais, enquanto todos conversavam, rindo e se divertindo, o pai da moça percebeu algo estranho: nos dentes de seu genro havia muitos fios vermelhos. Descobriu-se, então, que o pai da criança era um lobisomem e havia atacado seu próprio filho!
Meu avô também contava outra história e essa o envolvia. Dizia que quando jovem era bonito e elegante – o que minha avó confirmava. Para visitá-la, quando ainda eram namorados, havia uma grande porteira no caminho entre o sítio em que ele morava e o sítio onde morava minha avó. E ele sempre fechava essa porteira com o trinco, após passar por ela. Depois de fazer várias vezes aquele trajeto, percebeu que a porteira estava sempre aberta, apesar de ele a ter fechado. Numa noite, após fechar a porteira por mais de uma vez, e ela voltando a se abrir, disse que ficou irritado e começou a xingar. Foi quando escutou uivos vindo da mata. A lua cheia se escondeu por trás das nuvens e ele sentiu um vulto passar pela sua lateral esquerda. Tremendo de medo, saiu correndo em disparada. Ao chegar em casa, riscou uma cruz na porta, se benzeu, foi para o quarto e se enfiou sob as cobertas. Nada aconteceu com ele, mas no dia seguinte, havia vários arranhões na porta, como se tivessem sido feitos por uma fera raivosa esfregado as unhas. Até hoje por aquelas bandas ouve-se falar do mistério da porteira. E meu avô tinha a certeza de ter sido coisa do lobisomem!
Hoje lembrei da minha infância e adolescência em casa de meus pais, sentado em volta da mesa com macarronada e frango assado no domingo. Ou o tutu de feijão com couve refogada e farofa… Ah, a farofa de cenoura da minha mãe era incomparável! E o que dizer da pizza de sardinha? Do cuscuz, da sopa de mandioca…
Pizza al taglio
Gosto muito de conversar com as pessoas que têm as lembranças afetivas que elas carregam das comidas de suas mães e avós. Hoje lembrei muito de minha mãe e do jogo de cintura que ela tinha para me fazer comer um pouco de carne. A carne moída era enfeitada com muita batata e um tempero que mascarava o gosto. O frango assado com a farofa de cenoura do qual eu mal comia um pedaço do peito e com muita farofa. E a pizza de sardinha como só ela sabia fazer… e tudo para me agradar. Essa da foto acabei de fazer e ficou parecida com a dela. E o cheiro delicioso que tomou conta do apartamento foi como se ela estivesse alí, na cozinha. Quase consegui ouvir a voz dela dizendo: “Dinho, fiz pizza de sardinha para você”!
As lembranças desse texto foram vividas na Vila Martins, na casa em que minha família morava na Rua M1-A, esquina da Avenida M1-A, na cidade de Rio Claro/SP, no final dos anos 60. Eu tinha uns 9 anos, as ruas eram de terra batida e em toda sua extensão havia um terreno enorme, local da antiga linha férrea da Maria Fumaça que ligava Rio Claro a Ajapí, Ferraz e Corumbataí. Em frente de minha casa começariam em breve a construção do Ginásio Estadual Prof. João Batista Leme, atual Escola Estadual com o mesmo nome. Era um tempo de inocência, de brincadeiras de rua, sem televisão e jogos eletrônicos. Volta e meia ouvia-se mercadores passando em carroças e mais raramente em carros, vendendo todo tipo de produto. Lembro do proprietário de “A Feira Permanente” que passava semanalmente com uma carrocinha empurrada por ele, vendendo suas mercadorias. Gritava: “senhoras, venham! Eu tenho meias, lenços, pennnnnnnntes e camisetas”. Essa loja, tradicional de Rio Claro, ainda existe. Está localizada na Rua 1 com a avenida 16 e hoje é administrada por netos daquele senhor. Minha mãe era frequentadora assídua desse Armarinho e eu ia sempre com ela quando fazia suas compras. O dono do negócio – o qual não lembro o nome – era muito simpático, tinha fala mansa, usava uns pequenos óculos de leitura apoiados sobre a ponta do nariz e não sei por que me remetia à figura de um padre. Acredito que devido à sua peculiar gentileza.
Sempre gostei de ler! Passava hora sobre a cama, lendo, viajando nas estórias dos personagens da Disney e do Maurício de Souza. Também adorava ler Júlio Verne e Monteiro Lobato. Minhas revistas em quadrinhos nunca eram novas. Na Avenida 8-A, esquina da Rua 4-B, em frente ao DAAE – Departamento Autônomo de Água e Esgoto, havia um sebo, cujo proprietário era um homem que provavelmente fora acometido de paralisia infantil, pois não tinha movimento nas duas pernas. Fumava muito! Quando terminava de ler minhas revistas, ia até lá e trocava duas já lidas por uma que ainda não tinha lido. E de vez em quando, com algumas poucas moedas, adquiria um novo lote.
João Barbi, Augusto, ? e Cristina Barbi
Estando sempre dentro de casa, acompanhava a rotina de minha mãe e as costumeiras conversas que ela tinha com as vizinhas e com as pessoas que batiam no portão. Havia a Shirlei, uma senhora com pequena deficiência intelectual que costumeiramente passava para tomar um copo de água. Trabalhava como doméstica numa residência próxima. E nesse interim dizia para minha mãe: “D. Malia (minha mãe se chamava Maria). Ela pensa que eu sô clava (escrava) pá passa covão (escovão, para quem não conhece, digamos que era uma enceradeira manual). Num sô clava não!” Também soltava de vez em quando um “daputa” referindo-se à patroa, diminutivo daquele palavrão que não quero escrever aqui.
Nasci e morei em uma fazenda, na cidade de Rio Claro, interior do estado de São Paulo. Ainda criança nos mudamos para a cidade e estudei só em escola pública… Meus amigos de infância tinham apelidos como Quatro Olhos, o Gordo, o Magrelo, o Orelhudo etc. e tudo era levado na base da brincadeira. Não era bulling. Nem sabíamos o que era isso! Éramos humildes, comíamos o que era colocado na mesa, muitas vezes só arroz e feijão, outras, arroz feijão e banana. Ninguém tinha o bolsa família, cesta básica, não havia Google, Facebook, Instagram e nem Wikipédia, tínhamos as enciclopédias Barsa, com suas dezenas de volumes e as pesquisas de estudo eram feitas nas bibliotecas públicas ou na pequena biblioteca da escola.
Quando nossa mãe saía na janela e dava um grito, a frase “peraí, mãe” era para não sair da rua e não do computador… Apanhei muito de cinto, ficava de castigo e nem por isso me tornei um rebelde sem causa… Nós tínhamos brinquedos, muitos deles feitos com latas velhas, pneus… e não celulares. Colecionávamos figurinhas e não namorados ou namoradas. Batíamos “bafo” com as figurinhas e não nos colegas e nos professores (aliás professor era muito respeitado e admirado). Cantávamos o Hino Nacional com a mão no peito e todas as semanas ao hastearmos a bandeira em frente da escola.
Brincávamos de polícia e ladrão, de amarelinha, esconde-esconde, jogávamos taco, queimada, passa anel, vôlei, pique bandeira, jogávamos bolinhas de gude, usávamos roupas infantis quase sempre de segunda mão, vindas de primos ou irmãos e não nos vestíamos como adultos. Soltávamos bombinhas tipo traque nas festas juninas e empinávamos pipas e pulávamos elástico. Assistíamos o Sítio do Pica Pau Amarelo, Vigilante Rodoviário, Rim Tim Tim, Zorro, Pica Pau etc., na casa do vizinho, porque não tínhamos televisão ou geladeira.
O único pó que quase todos nós éramos viciados era Nescau ou Toddy. Tocávamos a campainha da casa do vizinho e corríamos. E levávamos palmadas por isso! Soltávamos pipas na rua. Tínhamos sempre dever de casa para fazer e fazíamos mesmo e as aulas de educação física eram de verdade. Não nos importávamos se o nosso amiguinho era negro, branco, pardo, pobre ou rico. Meninos ou meninas, todos brincavam juntos e como era bom…
Ah, que saudades da época em que a chuva tinha cheiro de terra molhada… Do cheiro de mato cortado no terreno baldio ao lado da casa. Do cheiro doce das flores da enorme jabuticabeira do quintal do vizinho. E na minha infância, a felicidade tinha gosto de geladinho de Ki-suco sabor groselha e nossa única dor era quando usávamos merthiolate nos raspões dos joelhos…
“Uma ocasião, meu pai pintou a casa toda de alaranjado brilhante. Por muito tempo moramos numa casa, como ele mesmo dizia, constantemente amanhecendo”.
Adélia Prado
Nasci, no final década de 1950, no município de Rio Claro/SP, mas meus pais, tios e avós moravam e trabalhavam na Fazenda e Haras Morro Grande, distrito rural daquela cidade. Sou o terceiro filho de uma família de três irmãos, que era para ser de quatro. Minha mãe perdeu um filho quando estava grávida de 6 meses. Meu pai era o terceiro dos oito irmãos de uma família de filhos de italianos. Só conheci a minha avó paterna, Virgínia Rosin Calore Martini. Ela contava as aventuras da longa travessia do oceano que seus pais fizeram, da Itália até o Brasil, que teria durado seis meses, entre outras histórias.
Meu avô, Primo Martini, com minha avô, Virgínia Calore Martini, em sua primeira foto juntos, na saída da missa da igreja de Santo Antônio, em Morro Grande, quando começaram a namorar.
Depois de algum tempo, meu avô, Primo Martini, comprou um sítio bem próximo da fazenda onde trabalhavam. A casa, bem simples, ficava em uma parte baixa do terreno, com muitas árvores frutíferas ao redor, como laranjeiras e mangueiras. Tinha também um pé de jambo enorme, que ficava do lado esquerdo da casa, no qual eu e meus primos costumávamos subir. Tudo permeado pelas flores da minha avó. Roseiras, cravos, dálias, rainhas margaridas, olgas, primaveras…Tinha duas cozinhas na casa e um corredor comprido onde havia os quartos de dormir. E lá no sítio, não havia separação entre a vida dos adultos e das crianças. As tarefas eram feitas em conjunto, quer sejam as domésticas ou as da roça, cada um com responsabilidades compatíveis com a idade e a força.
Cultiva-se basicamente arroz, feijão e milho. Mas lembro que tinha velhos pés de café, talvez plantados pelo antigo proprietário ou outro qualquer, que ainda produziam. Do lado de fora da janela da sala de jantar tinha um pequeno parreiral, que produzia uvas brancas e escuras e que quando produziam tinham seus cachos vigiados por meu avô. Nas festas de ano novo, sempre tinha vinho tinto de garrafão e lembro que minha avó misturava vinho com água e açúcar cristal. Colocava em canecas e dava para nós, ainda crianças, molhar o pão. Não, ainda não bebíamos vinho puro. Ter o direito de tomar vinho correspondia a um ritual de passagem da vida de criança para a de adulto. Todo o trabalho no sítio era feito manualmente. Cada filho que nascia representava mais uma enxada, um machado, uma foice, um facão… A cada ano e com a parcimônia e sabedoria do meu avô e tios, derrubava-se nova porção de mato para ampliar a área de cultivo. Uma junta de bois ou um cavalo puxava o arado. Por ali, raramente usava-se o dinheiro. O que havia era muito escambo.
Gosto de escrever sobre minhas lembranças de infância. Tenho o privilégio de ter comido doce de abóbora com coco feito em tacho de cobre. E feito com as abóboras colhidas no sítio de meus avós paternos ou com aquelas plantadas no quintal de minha casa. Aquele doce, apurado no fogão a lenha, não troco por nenhum doce industrializado – era doce feito com amor e muita dedicação por uma pessoa muito especial para mim: minha mãe.
Desde que me conheci por gente ela fazia doces, uma arte que certamente aprendeu com sua mãe ou como cozinheira que foi no Haras e Fazenda Morro Grande (hoje Ajapí), distrito rural de Rio Claro. Meus avós paternos foram administradores dessa fazenda e depois passaram a morar em um sítio que adquiriram dos irmãos de meu avô, naquele distrito.
Nessa pequena propriedade passei alguma parte de minha infância e as férias escolares de minhas irmãs sempre eram por lá. Para mim, menino de cidade, tudo era uma aventura: dormir sob a luz de lamparina (o interior do nariz ficava preto), tirar água do poço, ver minha avó cozinhar no fogão a lenha, assar pães no forno a brasa (espécie de forno parecido com a casa do pássaro João de Barro), andar a pé do sítio até Ajapí, passear de carroça, ver minha tia Leonor passar roupas no ferro a brasa, meus tios e avô matarem porcos para a subsistência.
No dia 01 de janeiro meus avós realizavam uma Festa para comemorar o novo ano, quando também era comemorado o aniversário de meu avô, Primo Martini.
Na semana que antecedia a comemoração, minha avó fazia tachos de doces, massas caseiras, meus tios e avô matavam leitoas e frangos. Tinha pães assados no forno a brasa. Como não havia energia elétrica, não tinha geladeira. Meu avô encomendava barras enormes de gelo, que eram quebradas e o gelo picado era colocado em tambores para resfriar os refrigerantes, as cervejas ou a serpentina por onde passava o Chope. Tinha também o vinho de garrafão. Lembro-me que minha avó misturava água e açúcar no vinho e dava pra gente comer com pão! Era tanta fartura de comidas e bebidas que hoje me pergunto como ela, minha mãe e tias davam conta de tantos afazeres. Vinham todos os parentes com seus filhos e os amigos das redondezas. Era muita gente!
Foi antes da revolução dos Beatles, antes da minissaia, quando escândalos políticos não vazavam nos noticiosos da TV. Era um moço pacato e, para o gosto das ‘meninas estudadas’, que nem eu, as meninas da Escola Normal, até mesmo um pouco sonso. Sem garbo, sem aprumo, ficava lá com o pai, na loja de coisa pra fazendeiro, uma pessoa sonolenta. Nunca vi o Otavianinho marchar com os moços do Tiro de Guerra, jogar futebol, nadar, jogar malha no campinho, pertencer à Congregação Mariana, nada, nada mesmo. Parecia clone do pai que ficava na registradora, ele só atendendo a freguesia, embrulhando ração, pesando semente, mal levantando a cabeça pra encarar. Pois, imagine – e é preciso imaginação -, o pai do Otavianinho, o Otaviano velho, morreu e ele herdou a loja. Antes do luto acabar, comprou um rabo-de-peixe, botou um caixeiro mais sonso que ele no balcão e saiu pra vida. Dizem que ele disse experimentando o volante do carro: ‘agora vou pegar isso e as menina.’ Me lembro de que torci o nariz, quando tio Lute contou a novidade, arremedando a fala caipira dele. Pois sim, um mês de passeio no Cadillac foi o suficiente pra estourar com a nossa sólida apreciação sobre a sonsura do Otavianinho. Foi de novo tio Lute quem contou a respeito: já sabem? O Otavianinho quase morreu, ainda agorinha. – Hein? – É.
– De quê? – Por acaso, eu vi tudo, desculpou-se. Sabe o que o Otavianinho andava aprontando? disse controlando mal a excitação. – Pois o mocorongo envinha de há muito pulando a janela da casa do seo Canuto, direto pró quarto da Calixtinha! Oooo queeeeê? meu pai falou. – Pois foi. O Canuto descobriu e queria matar o homem.
Foi lá na loja, armado e aos gritos. É, o Otavianinho deu foi muita sorte, porque agarraram o Canuto e ele teve tempo de escapulir. Escapulir, arre, o único senão estético do relato. bom, tio Lute e meu pai não se deram conta da minha presença. Assim que começaram a conversa aproveitei pra ficar invisível e escutar tudo, tão excitada quanto tio Lute. De noite percebi que meu pai contava a história pra minha mãe, ele também com um gozo desconhecido na voz. Escutei eles rirem, o que me dava sempre enorme felicidade. Na minha cama, depois que Neneca dormiu, foi a minha vez de saborear tudo, economizando ponto por ponto daquela história que mexia com a minha fantasia mais secreta: depois que todos dormissem, o Adalberto da Têxtil viria arranhar feito um gato a janela do meu quarto e eu iria abrir só um pouquinho e ele falaria coisas comigo e proporia outras, com uma voz irreproduzível, de tanto desejo, e eu iria negar-me como Santa Maria Goretti. Ele me tocaria de leve, demoradamente, ou forte e rápido, numa mistura de perversão e respeito. Sairia noite afora, suspirando por mim, e eu passaria a noite em claro, suspirando por ele. Ganhei simpatia pelo Otavianinho e uma admiração pela Calixtinha, que fez aquilo tudo e continuava com a mesma cara inocente. Que mistério, meu deus! O Canuto morria de dengo pelo neto feito à sua revelia, fez as pazes com o genro, que ficou podre de rico. O que eu fico imaginando é porque o Otavianinho pulava a janela de Calixtinha e não namorava como todo mundo, na praça, ou na porta da igreja. Às vezes eu acho que é porque ele era um falso sonso e fui errada de olhar para ele com desdém, ou que a ‘inocente’ da Calixtinha é que armou tudo muito bem armado e o bobo caiu direitinho. Esta segunda hipótese sendo a mais provável, com certeza, a verdadeira. Romeu nenhum pula janela se uma Julieta diligente não afrouxa o trinco. Contudo, tanto tempo passado, considero que, a não ser que as famílias se odeiem e tornem o encontro impossível, é melhor não abrir janela nenhuma, porque a vida é breve e a arte, longa. Mais vale uma janela sempre perigando abrir, que outra para sempre aberta.
Em se tratando de romance, claro. Amo o que dá trabalho. Mas não foi exatamente assim que a Calixtinha raciocinou? Não foram as mesmas minhas razões que a fizeram optar pelo difícil, namorando escondido? Tio Lute falava que o Canuto queria só fazer barulho com o trinta-e-oito. Ah, sei mais nada não, estou ficando confusa. E longe de mim fazer assertivas sobre amor e janelas. O menino da Calixtinha saiu diferente dos dois. ô vida misteriosa!
Já escrevi vários posts sobre minhas lembranças de infância. Como tem muita coisa que não lembro, pedi para as minhas irmãs, Tereza e Ivone e para alguns primos e primas que relatem fatos que lembrem de quando éramos pequenos para que façam parte destas memórias aqui no A Simplicidade das Coisas.
Hoje a Tereza fez uma vídeo chamada comigo. Comentou que ontem, conversando com o Ademilson, seu marido, lembrou de alguns fatos de quando tinha entre 4 e 5 anos de idade. Isso quer dizer que provavelmente tais memórias são do ano em que eu nasci – 1959 ou bem próximo dele.
Naquela época, minha família morava no Haras Fazenda Morro Grande, de propriedade do Sr. Renato Mário Pires de Oliveira Dias, onde meu avô era o administrador e meu pai e tios eram colonos. Por volta de 1959, meu avô, Primo Martini, comprou o sítio Boa Vista que era de propriedade de seu pai, Luigi Martini e que ficava cerca pouco mais de mil metros do Haras e Fazenda Morro Grande. Portanto, deixou de ser o administrador da fazenda e passou a cuidar de sua propriedade. Toda a mudança foi feita por carroça. Tereza lembrou que na última viagem, os últimos pertences transportados foram os vasos com as plantas de minha avó, Virgínia Rosin Calore Martini. E ela chorou tanto, fez tanta birra dizendo que queria ir junto, que a colocaram em cima da carroça.
Ao chegar ao sítio, Tereza teve a unha do dedão de um dos pés arrancada em um acidente com um dos vasos. Chorou muito. Queria a nossa mãe. O Nelli (diminutivo do sobrenome Antonelli), amigo de meu tio Pedro Cirilo Martini (irmão mais novo de meu pai e o único tio ainda vivo do lado dos Martini) a colocou deitada de bruços sobre o seu cavalo como se estivesse carregando um saco de batatas e a levou para casa. Foi esguelhando por todo o caminho, tal era a dor que sentia. Chegando na fazenda, “a encomenda” foi entregue com a mesma brutalidade com que tinha sido carregada. Tereza tem memória privilegiada. Eu não lembro de quase nada de minha infância antes dos sete anos.
Outro relado feito pela Tereza foi o de um “causo” que meu avô sempre contava e que fazia rir muito a ele e a quem o ouvia. Até a década de 70 havia uma linha férrea que ligava Rio Claro a Corumbataí. A Maria Fumaça circulava em trilhos de bitola estreita e ia parando em alguns lugares durante o trajeto, como a Fazenda São José, o bairro rural de Cachoeirinha, e Morro Grande (atual Distrito de Ajapí) etc.
Pois bem. Uma das famílias mais abastadas de Morro Grande era a do clã dos Piccoli, sendo o seu patriarca conhecido como Dr. Piccoli. Ele não era doutor nem nada, mas o chamavam assim por conta de sua influência e poderio local. Para se ter uma ideia, a estação de trem ficava dentro de sua propriedade. E ela está lá até hoje. Segundo meu avô, numa viagem entre Rio Claro e Morro Grande o Dr. Piccoli vinha todo garboso, fingindo ler um jornal (e pelo que meu avô dizia ele não sabia ler). Em certo momento uma senhora percebeu que o jornal estava de ponta cabeça. Tocou no ombro dele e disse: “Dr. Piccoli, seu jornal está de ponta cabeça”. Ao que ele respondeu: “Eu sei. Já li ele todinho. Agora estou deslendo”.
Verdade ou não, percebe-se que o Dr. Piccoli era um italiano de raciocínio rápido.