A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini

dezembro 6, 2020

2020

[…] “A maior parte da nossa memória está fora de nós, numa viração de chuva, num cheiro de quarto fechado ou no cheiro duma primeira labareda, em toda parte onde encontramos de nós mesmos o que a nossa inteligência desdenhara, por não lhe achar utilidade, a última reserva do passado, a melhor, aquela que, quando todas as nossas lágrimas parecem estancadas, ainda sabe fazer-nos chorar. Fora de nós? Em nós, para melhor dizer, mas oculta a nossos próprios olhares, num esquecimento mais ou menos prolongado”.
Marcel Proust
In A sombra das raparigas em flor

Salvo engano, foi Clarice Lispector que disse que o talento da escrita nasce da frequência com que ela é experimentada. E que há quem pense que só os que gostam devem escrever. Não é verdade. Todos que têm algo a dizer, que têm o que compartilhar, que precisam documentar o que vivem, que querem refletir sobre as coisas da vida e sobre o próprio trabalho, que ensinam a ler e escrever… precisam escrever. E minha amiga Rosa Hebling, de Rio Claro/SP, professora aposentada e ótima escritora, tem muito o que compartilhar com suas memórias. Nesse ano atípico resolveu criar em seu perfil do Facebook “O Diário da Rosa”, onde documenta o que já viveu e reflete sobre isso.

O ponto de partida foi em 02 de maio, com “O Diário da Rosa 0”. Nasce com uma carta dedicada à sua neta Jade. No dia 09 do mesmo mês, surge “O Diário da Rosa #1”, onde ela escreve: ” Minha filha Renata me disse assim: – Mãe, você gosta de escrever. Por que você não faz um… tipo assim, um diário da quarentena?

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“Depois de uns dias, me peguei pensando: “diário de quarentena? ”. O que pode haver de interessante para contar sobre a rotina de alguém confinado nos poucos metros quadrados de seu apartamento?”

A partir disso Rosa vem nos presenteando com lindos textos, recheados das mais diversas lembranças. Hoje ela nos brindou com o “Diário da Rosa #29”, que, com sua permissão, reproduzo abaixo. Boa leitura!

Foto por cottonbro em Pexels.com

“Diário da Rosa #29” – Dezembro chegou. Ainda continuo obedecendo ao isolamento social, mas sei que Papai Noel já está preparado para nos assaltar em todo final de corredor de supermercado, querendo nos agarrar em todas as portas de lojas, tentando escalar janelas das poucas casas que ainda se preocupam em vestir-se para o Natal.

Assim 2020 vai chegando ao fim. Será que 2020 terá fim? O que podemos dizer deste ano? No mínimo, o ano mais estranho de nossa vida. Com certeza, o mais contraditório de todos.

2020. O ano que quase não vimos passar. Ou vimos passar contando segundo a segundo? Passou rápido demais – ao mesmo tempo, está levando toda uma eternidade para acabar. Um ano em que nada fizemos – mas, ao mesmo tempo, fizemos demais – nunca fizemos tanto!

O ano em que precisamos manter a maior distância de familiares, amigos, conhecidos. O ano em que mais nos sentimos aproximar de familiares, amigos, conhecidos. O ano do distanciamento social e, ao mesmo tempo, o ano em que sentimos a forte ligação entre todos os organismos vivos do planeta. O ano em que sentimos a própria Terra como um organismo vivo, com a vida fluindo entre ela e todos os seres, numa corrente única de energia. A noção de Gaia, que antes nos parecia um mistério de domínio exclusivo dos naturalistas ou ambientalistas sonhadores, passou a ser sentida ou pressentida por todos, mesmo por aqueles que nunca se interessaram por entender a teoria dos até ridicularizados “naturebas”.

O ano em que nos sentimos paralisados, surpresos com nossa imensa ignorância, estupefatos ao ver que não sabemos sequer lavar as mãos – tarefa que, humildemente, como crianças, tentamos aprender. Impotentes, reaprendemos perplexos que precisamos exercitar a higiene com toda paciência, lavando nossos alimentos com água e sabão – armas simples contra esse ser invisível, porém, nem mesmo assim conseguimos nos salvar: sem imaginar como, de repente, ele estende sua língua insidiosa e alcança alguém mais frágil, que julgávamos protegido em seu cárcere doméstico e o carrega para a viagem final.

Com todo o conhecimento que temos, com todo o avanço científico, o homem não conseguiu sequer chegar a uma definição única sobre a natureza do vírus – quero dizer, ainda não conseguimos definir sequer se é um ser vivo ou não. Essa é mais uma das contradições – e esta muito antiga – que cabe muito bem no cenário esdrúxulo em que 2020 nos coloca. Não temos ao menos um inimigo que consigamos matar, nem sequer sabemos se ele realmente vive. Ele tem o poder de nos atingir no mais íntimo de nosso organismo, desorganizando-o, destruindo-o, e nós nos debatemos em desespero pelo simples ato de respirar. Ao mesmo tempo, deparamo-nos com a perplexidade de assistir às insanas tentativas de usar essa pandemia em disputas políticas que mal conseguimos entender. Pior que isso, existem as sórdidas manobras dos gananciosos, que não perdem oportunidade alguma para ganhar algum dinheiro a mais, não importando a que preço.

Em meio à tentativa desesperada de encontrar a vacina para esse mal, existem as discussões – sempre com diferentes tonalidades políticas – a aterrorizar o pobre povo, já suficientemente amedrontado, com previsões sombrias sobre nosso futuro. Há pouco, eu própria me vi assustada com a explicação de uma doutora americana, aparentemente uma autoridade no assunto, detalhando os resultados da vacina (carregada de metais tóxicos e DNA de animais como macacos, porcos, ou células fetais), que teria o efeito invasivo sem precedentes de alterar nada menos que nosso DNA – nossa própria composição genética. A vacina traria ainda, como consequência, um bônus que interessaria à Fundação Bill e Melinda Gates, pois nos transformaria em verdadeiras antenas 5G, capazes de transmitir nossos dados biométricos, facilmente detectáveis através da tinta Luciferase (nome por si só assustador), que passaríamos a carregar. Bom, isso também já é demais! Duvidei seriamente da intenção de Bill Gates visualizar meus dados biométricos! O que ele ganharia com isso? Já chega tudo o que a Receita Federal sabe de mim, através de meu CPF, sempre em busca de alguma vantagem com que eu possa contribuir para saciar seu apetite, agora vem essa doutora, de nome aparentemente importante que mal sabemos soletrar, dizer que Bill Gates está interessado em meus dados biométricos? Impossível. Pacientemente, fui em busca de maiores informações e descobri que se trata, nada mais nada menos, de mais “fake news”.

Essa é mais uma das características assustadoras deste ano de pesadelos: quase tudo é falso, não podemos mais acreditar em nada sem antes investigar. Não podemos mais aceitar as publicações – cada vez mais profusas – sobre o mundo que nos cerca. Todo mundo é dono do saber e ninguém sabe nada. Com a maior eloquência e nenhuma responsabilidade, as publicações se espalham pela internet, invadindo todas as casas sem pedir licença – e ingenuamente deixamo-nos levar pela enxurrada de informações, quase nos permitindo afogar por tanta insanidade e, o que é pior, credulamente ajudando na sua divulgação. E não são pessoas comuns, do povo, a alimentar o terrorismo midiático – o que dizer diante das afirmações dos próprios elementos do governo da nação mais poderosa do mundo de que a China teria fabricado tal vírus? Seria parte de um plano maquiavélico chinês para derrubar mercados, desbancar os Estados Unidos e passar a ditar a nova ordem mundial. E se… – nós não conseguimos deixar de pensar – …e se for verdade? Ainda, como outro dia minha filha ponderou, sem saber que estaria aumentando minha estupefação, como podemos saber se é verdadeiro o desmentido que se segue? Quem verifica a veracidade das publicações dos “sites” que nos tranquilizam dizendo que tudo são “fake news”?

Essas inverdades não são restritas ao mundo da pandemia – estão acontecendo em todos os tipos de publicações. Por vezes, vemos até belos textos circulando – e seu autor poderia orgulhar-se de registrar neles a sua assinatura – mas, não consigo entender por que, a pessoa prefere assinar com o nome de algum famoso que já não precisa de ajuda para engrandecer a sua importância. Assim é que não cessa de crescer a produção de certos autores preferenciais na internet, como Shakespeare, Charles Chaplin, Mário Quintana, Cora Coralina e outros. Shakespeare, na verdade, não deve se importar, acostumado a isso: dizem que muitos textos produzidos em sua época levam sua assinatura, mas não são seus.

Realmente, um ano estranho. Particularmente, podemos comentar sobre o que vemos aqui, ao nosso redor: ao mesmo tempo que muitos ainda se mantêm em isolamento social, outros – a maioria, talvez – já vive como se nada “diferente” estivesse acontecendo. Vemos crescer o número de casos da doença, anunciando-se assustadoramente uma segunda onda, quando, pelo que notamos, ainda não saímos da primeira. Pelas ruas, a movimentação é normal – pessoas com máscaras e outras sem, indiferentes à ameaça que em nenhum momento deixou de existir desde que se manifestou entre nós. Liberada pelo “conselho familiar”, com muita cautela, voltei a praticar meu exercício diário: um longo passeio de bicicleta de manhã pela ciclovia não muito distante de casa. Pelos caminhos que percorro, posso observar indícios de que o comportamento das pessoas, enfim, deve ter sofrido mudança: ao invés de ver “camisinhas” jogadas pelo caminho, agora vejo máscaras. Esperando que o vírus tenha a gentileza de poupar os amantes, imagino que a audácia maior tenha se tornado roubar – sem máscara – um beijo à mulher amada.

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“Para não dizer que não falei de estrelas…”

Na minha tendência natural de não querer ser pessimista, quero finalizar lembrando, com muita satisfação, que pelo menos dezembro nos promete alguns espetáculos no céu:

1. chuva de meteoros na madrugada entre 13 e 14 de dezembro;

2. eclipse solar em 14 de dezembro (para nós, não será total – mas já poderá nos encantar);

3. Conjunção de Júpiter e Saturno em 21 de dezembro – os dois planetas se alinharão, formando um ponto de luz espetacular conhecido como “Estrela de Belém”. Não são “fake news” – no céu ainda podemos acreditar.

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