A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini

dezembro 4, 2020

O terceiro olho – Adélia Prado

Filed under: Coisas que eu gosto,Lembranças,Memórias,Uncategorized — Augusto Jeronimo Martini @ 10:44
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Apesar do sol, do dia esplêndido, depois de tanta chuva, a mulher não quis descer do carro. Espero aqui, ela disse, numa espécie de pequena vingança, uma pirraça possível na sua idade. Vingança contra a vida, afinal, porque ninguém lhe devia nada. Mas a vida não é Deus? Abaixou o espelho em frente da poltrona e resolveu olhar-se.

Foto por Sam Kolder em Pexels.com

A ruga vertical no meio da testa, a cada dia mais funda. Amanhecia já com ela, como se tivesse dormido a noite inteira com aquele ar preocupado. “Ruga vertical é ruga de neurótico”, ouvira da Marialva, mas não dava pra confiar muito na sua psicologia de bolsa. Em todo caso, andava mesmo irritadiça, enjoada, entojada, como diria sua mãe, com a paciência nos limites. Então, ora, continuou a olhar-se e fixamente, no lugar onde dizem termos o “terceiro olho”, bem ali onde o vinco de sua testa acentuava-se. Ficou muito instigante a coisa, seu rosto transmutava-se, por quais razões não sabia. Desviava-se da sua aparência conhecida e virava monstro, os arcos das sobrancelhas parecendo dois braços de uma outra pessoa que lhe carregava os olhos sob as axilas. A figura, um homúnculo, parecia adernar, à direita, esquerda, monstrinho de pesadas pernas, anão de circo exibindo-se, oferecendo-lhe os olhos com que ela via seus olhos. Experimentou ficar estrábica, era bom.

Descansava do esforço, do empenho de não perder o monstrinho. Olhava, olhava, querendo ver o que via, cada vez mais e mais até não ver mais nada e descansar das tarefas que a esperavam. Caiu alguma coisa na pequena oficina, o barulho desconcentrou-a. Meu Deus, ela disse, me ajuda a… não sabia a palavra. Católica ortodoxa, ficou com vergonha de dizer me ajuda a entrar em “alpha”. Disse apenas: me ajuda. O hominho reapareceu. Mas Lisiene ligou a mangueira nas couves e a figurinha sumiu, sensibilíssima aos ruídos da casa. Em seguida o Radar latiu desesperado e o moço do gás bateu na porta junto com a Olinda querendo saber da Lisiene se ela tinha melhorado do machucão no pé e entregou um maço de arnica que era bem uma floresta. Finda a interrupção, dispôs-se a recomeçar. Já concentrada, o marido veio até a garagem: vou na fundição do He Man ver se, com base nesta, ele faz outra peça pra mim; quer ir também? Fundição do He Man!? Justo na hora em que o hominho voltava a caretear.

Do livro Filandras, de Adélia Prado – Editora Record – Rio de Janeiro     •     São Paulo, 2001 – página 115.

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