Há um momento em que todos na sala calam-se, olhando o bico dos sapatos. Nesta hora, qualquer acontecimento é bem-vindo. Uma borboleta gigante que saia detrás da cortina, ou um mosquito que sobrevoe o cadáver são recebidos com íntimo regozijo. Alguém pressuroso sairá a espantá-los, todos acompanhando atentos e por um minuto a dor arrefece, por um minuto descansa-se. Os periquitos no viveiro começam grande algazarra e outro se lembra socorrido -, é preciso dar de comer aos bichos, botar água pró cachorro. E café?, acudirá um terceiro, é preciso fazer mais café, de madrugada esfria e antes que escureça acho bom pegar uns colchões emprestados. Qualquer providência tem um halo de cósmica dimensão porque: um homem morreu. Um homem que um dia viu na sua cozinha um gato de olho e pelo amarelos e tomado de grande susto disse com inocência: sai, criatura de Deus! E por toda a vida viu neste episódio um grande acontecimento, guardando-o como a um tesouro, sem saber mesmo por quê.

Recontou-o poucas vezes, reconhecendo-lhe a insubstância, pois era só aquilo: um gato de pelo e olho amarelos, um gato que por segundos fitara-o com a mesma admiração e susto. Sai, criatura de Deus! Esta exclamação não pertencia ao morto, um homem de palavra difícil pra navegar nos sustos. No entanto ele as dissera e admirava-se enormemente que houvessem saído de sua boca. Era muito bonito? Muito bonito não dizia nada, era muito o quê, meu deus? Sua mulher tinha saído, os filhos estavam na escola, ele foi pegar água na cozinha e viu o gato. Era preciso segurar aquele acontecimento que lhe devolvia as palavras, exigente. Não contou nada a ninguém naquele dia. Procurou nas tralhas dos meninos papel e lápis de cor e desenhou o gato de olho e pelo em amarelo, um desenho de que se envergonhava porque era muito feio e tosco, muito desajeitado. Contou pra mim o seu segredo, perdoando todos os meus pecados. Sei, porque deixei que se visse nos meus olhos, como vira ele próprio o gato. E só lhe disse isto: que visão magnífica! Ele puxou a cadeira, sentou-se e repetiu com a alegria de quem aprende língua estrangeira: pois é. Magnífica! Ficou grato para sempre, meu cúmplice. Pois este homem morreu. Amarela está sua face, a fraca luz da tarde, o perfil das pessoas sob a chama dos círios. Sua mulher à cabeceira deu um grande uivo, sangrando a pele do mundo: ó meu Deus! Olhei bem o seu rosto e supliquei como a que uivava: “Salva-nos porque perecemos…”
Entre os pés de latão que suportavam os círios a faixa de luz amarela bateu na cruz de alumínio. Alguém cochichou: os colchões já chegaram e já fiz mais café. A morte nos visita e nós abrimos a casa, precisamos de companhia e força pra chorar.
Do livro Filandras, de Adélia Prado – Editora Record – Rio de Janeiro • São Paulo, 2001 – página 133.
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