A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini

novembro 10, 2020

Lembranças de infância – o sítio de meus avós!

O sítio Boa Vista pertencia aos meus avós paternos Primo Martini e Virgínia Rosin Calore Martini. Ficava próximo da cidade de Rio Claro/SP, no Distrito de Morro Grande (hoje Ajapi), onde tudo era lindo e cheirava gostoso. Não possuía energia elétrica. A luz da lua cheia era a única luz que tinha nas noites escuras. Na casa, somente lampiões e lamparinas, que deixavam a gente com a parte interna do nariz toda preta por conta da queima do querosene. 
Na frente da casa tinha um barranco e nele um jardim muito bem cuidado pela minha avó, cheinho de rosas, dálias, margaridas. Tinha uns caminhos, que nós chamávamos de trilhos, os quais levavam aos locais mais usuais, como o galinheiro, o paiol, o poço.  

Pedro Cirilo Martini – meu tio

Em frente à porta da cozinha, alguns metros abaixo, ficavam o terreiro, onde secava-se os grãos de café e o paiol, que era um galpão coberto, fechado com madeira, o qual servia para guardar a colheita, sempre cheinho de milho, já seco, usado para alimentar as galinhas.  Tinha também os jacás com batatas, as abóboras e ferramentas.

Minhas irmãs Tereza e Ivone chegavam a passar as férias todinhas por lá. Eu, o caçula, sempre acabava voltando para casa com minha mãe.  

No sítio, tínhamos os dias inteirinhos para brincar, pular. Nos fundos das terras do sítio passava um pequeno curso de água, o qual corria sobre solo de piçarras coloridas. Era a nossa praia particular. As brincadeiras eram de pular corda, de cobra-cega, jogar peteca, subir em mangueiras, estilingue e bodoque.  

A noite sentávamos na cozinha ou na varanda sempre com duas ou três lamparinas acesas, com uma baciada de pipocas quentinhas e ficávamos horas ouvindo meu avô e tios contar histórias de assombrações, lobisomens e fantasmas, coisas que ouviram dos avós deles e que modificavam um pouco para nós. 

Lembro que Sexta-feira Santa não se varria a casa, não podia trabalhar, não podíamos comer qualquer tipo de carne ou beber leite, ou comer seus derivados.  

No mês de Junho acontecia a subida do mastro em louvor aos santos festeiros – Santo Antônio, São João e São Pedro. Tinha muita pipoca, amendoim torrado com a casca, canjica, milho verde, docinhos de leite e o “quentão”, que não podíamos beber. Era bebida de adulto. Para nós, chá de gengibre, canela e cravo. Tinha também o famoso vinho quente, mas nós, crianças, só podíamos olhar. 

Durante todas as noites acontecia o que considerávamos uma chatice, pois não tínhamos ainda a noção da importância da oração:  era ter que esperar a reza do terço antes de comer a baciada de pipocas! Era chato, mas também nos divertíamos. No momento das intenções, que devíamos responder “rogais por ela”, falávamos “rogai panela”.

Também me lembro nitidamente dos “benzimentos” de minha avó. Quando a gente ficava com dor de barriga ou alguma coceira estranha no corpo éramos benzidos. Parece que escuto a voz dela, macia, dizendo baixinho: “O que é que eu corto?” E ela mesma nos ensinava a responder: “Cobreiro, vermes, lombrigas, assim mesmo eu corto” e isso era repetido três vezes e ela ia cortando pedacinhos de alguma planta que não recordo qual era. Lembro que eu rezava baixinho e fazia o Sinal da Cruz várias vezes. E todas as dores iam embora. E minha avó fazia chá de hortelã com erva doce, ou chá de picão preto ou quebra-pedra e outras ervas, que tomávamos várias vezes ao dia. 

Meu avô, por sua vez, benzia picada de cobra. Sempre andava com um lenço no bolso e dizia que quando via uma cobra venenosa, retirava o lenço do bolso, dava um nó, fazendo uma oração e o jogava por sobre os ombros. E a cobra ficava ali, paralisada. Quem procurava benzimento não podia duvidar, caso contrário não funcionaria.

Foram tempos maravilhosos em meio aos animais, árvores frutíferas, ao cheiro do capim gordura pisoteado e molhado com o orvalho das manhãs frias de julho… 

Mas tinha coisas tristes também. Ver os porcos e galinhas sendo mortos. Depois de tudo dividido, ajudávamos a moer a carne e a encher as tripas com linguiças.  

No início dos anos 70 meu avô adoeceu e meu pai e tios acharam que ele e minha avó ficariam melhor na cidade. O sítio foi vendido. Meu avô havia comprado o terreno ao lado do nosso, na Vila Nova, Em Rio Claro/SP. Construíram uma casa e depois de muito pensar mudaram-se para a cidade. Tinham um grande quintal para cultivar. Pareciam bem, mas de vez em quando seus semblantes mudavam e seus olhares ficavam tristes. Quem plantava de tudo, passou a comprar “na carrocinha de verdura”. O pão que era amassado em casa e assado no forno de barro, passou a ser comprado do Baiano, nosso fornecedor de pão diário que o vendia em uma carroça, com um baú fechado. Mas minha avó manteve o hábito de cozinhar em fogão à lenha, como era seu costume. 
O lugar de nossa infância, o sítio de meus avós, tornou-se apenas lembranças boas.  O sítio ainda existe, passou por diversos donos, mas não é mais o mesmo. Hoje, salvo engano, pertence ao proprietário da Indústria de Frios Xavier, de Rio Claro. Com tudo mais moderno, energia elétrica, casa nova, nada sobrou para nos lembrarmos, a não ser o que vai, verdadeiramente, na memória. 

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2 Comentários »

  1. Caríssimo Augusto, “Lembranças de infância” e seus mínimos detalhes nos remete a um passado que nos deixou muitas saudades.
    Certamente muita coisa mudou, mas não mudou o que guardamos na memória e no coração.
    Parabéns pela sua enorme sensibilidade em nos brindar com um texto de elevado teor sentimental.
    Grande abraço,
    Augusto Bernardo – Amazonas

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    Comentário por Augusto Bernardo — novembro 11, 2020 @ 13:06 | Responder


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