A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini

maio 5, 2016

Hoje tudo é tratado como descartável

Quando estou muito agitado no trabalho eu falo sozinho, cantar sozinho é apenas o passo seguinte. Muitas vezes os colegas olham assustados para mim e quando percebo que estão olhando desviam o olhar.
Dia desses contei isso para um amigo que riu, em tom de gozação, mas ao rir saiu de sua boca um guincho parecido com aquele assovio dos amoladores de facas que passavam nas ruas de meu bairro, em Rio Claro, quando eu era criança. Sabem como é? Podia ter-lhe saído qualquer coisa, mas foi aquele som que saiu. Quando eu era pequeno e alguém fazia barulho semelhante ao rir, tinha uma vizinha que dizia que isso era sinal de que viria chuva. Sempre gostei destas crendices e mitos profundamente alicerçados em nada que é realmente concreto.
Resumindo: comecei a escrever isso porque hoje, ao ir a pé para casa, cruzei a praça da Sé e vi um senhor desmontando sua cadeira de engraxar sapatos e apetrechos para pequenos consertos e percebi como inúmeras profissões se tornaram descabidas nos dias de hoje. Já quase não há sapateiros… e nem amoladores de faca. Os padeiros e leiteiros que entregavam de porta em porta desapareceram do mapa. Isso porque estamos numa sociedade em que do velho não se aproveita, compra-se novo. Com a menor qualidade dos produtos e materiais, o preço fica mais baixo e, portanto, não compensa mandar arrumar. E penso: que ensinamentos estamos passando às crianças?! Quando formos velhos, o que nos acontecerá? Eu não tenho filhos, mas quero que os filhos de meus sobrinhos e de meus amigos saibam dessas antigas profissões e que o som dos amoladores de facas traz recordações.

Esculturas do artista Ha Schult, com humanóides feitos com lixo, geralmente latas em, Barcelona.

Esculturas do artista Ha Schult, com humanóides feitos com lixo, geralmente latas, em Barcelona.

É, infelizmente chegamos ao tempo em que tudo é mais fácil porque, quase tudo, se tornou descartável.
Mas não foram só os objetos que se tornaram descartáveis, os sentimentos também estão se tornando. É fácil ter centenas de amigos, mas são amigos virtuais, descartáveis, se perdem com o tempo, não fazem falta. São os amigos das redes sociais e dos interesses, nunca estão conosco quando precisamos. Não há laços de afinidade. As pessoas vivem uma vida descartável. Muitos corações estão cheios de ódio e, para eles, a vida não tem sentido, assim como não tem sentido a dignidade, o respeito, o amor e o perdão. 

E estava nessa corrente de pensamento quando lembrei que ontem li um texto (segue abaixo) escrito pela Ruth Manus no Estadão em que ela discorre exatamente sobre isso: a geração que trata tudo como descartável.
Mas eu, com o meu saudosismo infindável, digo para vocês que ainda sei amolar facas. E sei fazer o mesmo som dos amoladores de faca de antigamente.

A geração que trata tudo como descartável
RUTH MANUS – Jornal O Estado de São Paulo
04 Maio 2016 | 11:00
Coisas. Pessoas. Ideias. Amores.

(Ok, eu sei que essa é a terceira vez que eu uso a palavra “geração” num título de texto. Desculpem, eu juro que fui ao dicionário buscar sinônimos e não achei nada equivalente. Porque percebo que há em mim, nos meus amigos, irmãos e primos, algo que não há nos meus pais, tios, avós e sobrinhas. Sou dessa fatia do meio. Olho para ela, vivo suas angústias, convivo com ela. E talvez eu deva assumir de uma vez que o termo “geração” ainda vai aparecer outras vezes nos meus textos, sem que eu precise passar horas pensando em vocábulos alternativos.)

Foi com a minha geração que começaram a surgir as primeiras fraldas descartáveis. Foi nas nossas festas de aniversário que começaram a aparecer copos de plástico, garfos de plástico e pratinhos de papelão. Fomos os que começaram a levar suco em caixinhas para a escola, ao invés de precisar trazer a garrafa de volta para casa. E assim fomos aprendendo a viver uma vida descartável.
Os brinquedos iam e vinham. Tudo plástico. Não aprendemos a tomar cuidado, como foi com nossos pais e seus bonecos de porcelana. Caiu, caiu, sujou, sujou. Riscamos brinquedos com canetinha. Já já vinha um novo.
Fomos crescendo e o raciocínio não mudou muito. Não víamos muito sentido quando nossos pais falavam em costurar a mochila ao invés de comprar uma nova. Os preços dos produtos chineses já nos guiava para o consumo do novo e não para o cuidado com o velho.
O problema já seria grave se ele tivesse ficado apenas nas prateleiras de lojas e supermercado. Já seríamos perigosos o suficiente em termos ecológicos. Mas o raciocínio do descartável foi muito além dos bens de consumo.
Somos a geração dos relacionamentos descartáveis. Dos empregos descartáveis. Das paixões descartáveis. Das ideias descartáveis. Dos amigos descartáveis.
Até temos alguns amigos da vida inteira, sim. Para os quais costumamos não ter muito tempo na agenda. Mas temos sempre amigos novos. “Me adiciona no feice”. Adoro a fulana. Ela é fantástica. Estive com ela 2 vezes. Ih, ela apagou o facebook. Dois dias depois já nem lembro da fulana. Uma mina aí que eu conheci não sei onde.
Sentamos no bar, temos ideias fantásticas, começamos a debater e- espera, chegou um whatsapp aqui- que que a gente tava falando mesmo? Sei lá. As ideias não são concluídas, não são escritas num papel, não viram palavras. São, como de costume, descartadas junto com os guardanapos sujos na mesa.
Descobrimos novas bandas. Eu AMO essa banda. Ouço ininterruptamente por 7 dias. Falo para todo mundo que é a melhor banda do mundo. No oitavo dia, enjoo. Descarto. Vou procurar a próxima.
Entramos no estágio. Aparece uma viagem no verão. Pedimos as contas. Comprometimento? Ah, eles encontram outro estagiário logo. Somos contratados para um emprego. Seis meses depois aparece uma proposta que paga um pouco mais. Sei que eles contam comigo até o fim do ano, mas tenho que cuidar dos meus interesses. Meus planos. Minha vida. Eu, eu, eu. Contratos de trabalho descartáveis.
E os relacionamentos… Ah, os relacionamentos, nem se fale. Pessoas passaram a existir para preencher agenda. Se eu não tiver nada melhor para fazer, ligo para ela.
Quero você. Não quero mais. Quero você. Mas não quero me envolver. Quero você. Desde que você não me cobre. Quero você como eu quero. Queria você. Agora quero outro. Te quero de novo. Me enganei, não queria não. Noite na balada, namoro, noivado, casamento. Tudo descartável.
Pessoas viraram bitucas de cigarro. Ideias viraram copinhos de café. Paixões viraram post-it.
Somos das carreiras que nos consomem. Achamos que nosso corpo é descartável. Falta sono, sobra álcool. Achamos que o afeto pelos nossos avós mora no post de uma foto que será apagada ou esquecida. Não temos tempo para ouvi-los. Mudamos de amores como quem muda de ideia, mudamos de ideia como quem muda de roupa.
Somos a geração do raso, da água pelas canelas. Não mergulhamos fundo. Não sabemos o que é profundidade. Livros curtos, conversas rápidas. Fluidez. A gente acha que é rocha, mas a gente é gelo. E derrete, evapora, desaparece. Uma geração que trata tudo como descartável e que termina por ser, ela mesma, tão descartável quanto uma garrafa pet. Com a diferença de que a garrafa será reciclada e nós… Nós deixaremos algumas selfies como legado.

 

2 Comentários »

  1. Augusto, compartilho do mesmo sentimento que você. Tenho muitas amigas e alguns amigos, mas ninguém vem na minha casa.
    Desde que o Adriano se separou de mim, passei a perceber como vivemos mais no espaço virtual do que no real. Falo com muitas pessoas por dia, mas só via internet.
    Acredito que os mais jovens não percebam isso, eles não viveram na época em que até telefonar era mais difícil e caro.
    Um abraço

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    Comentário por Rosangela Doin de Almeida — maio 5, 2016 @ 16:58 | Responder

    • Oi Rosângela! Prometo que da próxima vez que for para Rio Claro com um mínimo de tempo aparecerei para um bom bate papo. Bjs. e saudades. Augusto

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      Comentário por Augusto Martini — maio 5, 2016 @ 17:10 | Responder


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