Penas do Tié
Vocês já viram lá na mata a cantoria
Da passarada quando vai anoitecer
E já ouviram o canto triste da araponga
Anunciando que na terra vai chover
Já experimentaram guabiroba bem madura
Já viram as tardes quando vai anoitecer
E já sentiram das planícies orvalhadas
O cheiro doce da frutinha muçambê
Pois meu amor tem um pouquinho disso tudo
E tem na boca a cor das penas do tié
Quando ele canta os passarinhos ficam mudos
Sabe quem é o meu amor, ele é você…
Quem viveu no interior do sudeste e percorreu as matas do cerrado ou campos sujos conhecerá o sabor da Gabiroba. Ela é uma frutinha miúda, tão doce e de sabor tão singular que quem experimenta jamais esquece. Eu tive o primeiro contato com ela quando morava em Rio Claro/SP, nos anos 60 e 70, período de minha infância.
Sempre morei em casas simples, com fogão à lenha, minha mãe fazendo pães, comidas simples e deliciosas, bolos de fubá, flor de abóbora frita ou sopa de Cambuquira. O dinheiro era curto e ela tinha que improvisar. Em muitos finais de semana eu e minhas irmãs, juntamente com meus pais, íamos para o sítio de meus avós. Isso quando tínhamos dinheiro para a passagem. Muitas vezes íamos somente eu e meu pai, de bicicleta. A distância era de aproximadamente uns 20 km em estrada de terra. Ele pedalava metade do caminho e parávamos para descansar. Depois seguíamos o outro tanto.
Minha avó morava no sítio Boa Vista que ficava distante 4 km além de Ajapí (ou Morro Grande), distrito rural de Rio Claro. E junto com ela e meu avô moravam o meu tio Pedro Cirilo, na época ele ainda era solteiro, minha tia Leonor, casada com Henrique Martini e os meus primos Cida, Jair e Dulce. No sítio tinha fogão à lenha, forno de barro no “terreiro” (quintal), galinheiro, viveiro de patos e galinhas e uma horta com as verduras e legumes tradicionais (alface, almeirão, chicória, abobrinha, pepino…) mas também tinha a serralha, ora-pro-nobis, taioba, azedinha, peixinho da horta e mais uma infinidade de mato bom pra comer, que era como eles chamavam as plantas que cresciam sozinhas, mas que não seriam desprezadas no preparo do almoço ou jantar.
Meu pai foi um lutador durante toda a vida. Por falta de estudos nunca teve um bom emprego. Sempre foi operário e sobrevivíamos do salário dele, de bordados que fazíamos em casa, e depois com o pouco dinheiro do salário de minhas irmãs, quer foram trabalhar nos Apiários Rosa, de propriedade do Sr. Anésio Marques. Nossa família vivia com simplicidade, mas nunca faltou o arroz e feijão sobre a mesa. É bem verdade que algumas vezes comíamos somente isso: arroz, feijão e um ovo para ser dividido. Ou arroz, feijão e queijo ralado (queijo que minha avó fazia e sempre nos dava algum). As galinhas eram criadas no quintal de casa. Quase sempre um porco também fazia parte do nosso dia a dia. Das galinhas aproveitava-se tudo. Muitas vezes a moela e o coração eram disputados durante o almoço de domingo.
Como passar do tempo os passeios no sítio foram ficando mais esparsos. Nossa situação financeira não era nada confortável. Mas lembro-me que ainda nessa época íamos passar as férias no sítio. Muitas vezes de trem. Minhas irmãs ficavam dias. Eu chorava e queria vir embora logo. Ansiava por chegar as férias, porque sabia que ia andar de Maria Fumaça e poderia ficar passando de vagão em vagão. Ou de ônibus (Jardineira), da Cia. José Alexandre Junior. Também sabia que ia comer muito queijo (minha avó dividia um queijo em 4 pedaços e dava um quarto dele para cada um comer de uma só vez). Também fazia groselha para tomarmos. Hoje sei que o que ela preparava nada mais era do que chá de hibiscos adocicado, tão na moda hoje!
O tempo passou, as lembranças ficaram vivas em minha memória e hoje me bateu uma saudade daqueles sabores da infância. Talvez por caminhar por São Paulo, vir a pé para o trabalho, passar pelas Praças da República e Sé e perceber que ainda reconheço as árvores, dando-lhes o nome. Ver que aqui, quase na entrada do Poupa Tempo existe um pé de tangerina Pokan carregada de pequenos frutos… Voltei a ter 7 anos e me emocionei com essa visão ao pegar uma das folhas, amassar entre os dedos e reavivar o arquivo do sabor lá no fundo da memória. E depois, já no trabalho, em conversa com o Wanderley, começamos a falar sobre frutos da infância e ele disse que tomou um picolé de Gabiroba no final de semana, numa representante da Sabores do Cerrado.
Sentei em minha mesa de trabalho e imediatamente fui transportado para os campos de onde atualmente fica o Jardim América de Rio Claro, na década de 60 e 70 , em que os terrenos estavam cheios de pés desse pequeno fruto, que mais pareciam um arbusto.
Voltei a sentir as mãos grandes do meu pai, segurando as minhas e colocando-me na garupa de sua bicicleta Monark. Voltei a sentir a barba de meu avô, Primo Martini, roçando meu rosto delicado quando me segurava no colo, ou quando pela primeira vez, lá no sítio, me pegou pelas mãos e me apresentou para uma pequena fruta amarela que parecia uma mini goiaba e que era a Gabiroba. Ah, com era bom colher aquele pequeno fruto aveludado e deixa-lo explodir na boca, com seu caroço envolvido por uma polpa doce e sedosa…..
E nesse momento, escrevendo esse texto, parece que estou sentindo o perfume suave das flores da Gabiroba, ou o cheiro do limão Siciliano que era espremido na limonada que minha avó nos preparava.
Emociono-me em lembrar das incursões que fazia com meu pai pela mata do Horto Florestal de Rio Claro, ou no sítio de meu avô, onde ele ia me mostrando as árvores e frutos que faziam parte da sua história e que um dia fariam da minha. E dizia: “as folhas dessa árvore são boas para o fígado, a casca daquela é cicatrizante”… Sinto uma lágrima escorrer pelo canto do olho por deixar vir a emoção por uma coisa tão simples…
E é por isso e outras coisas que quero voltar a morar no interior, nem que for por temporadas. Para poder ter Gabirobas, Jabuticabas, Mangas, Laranjas e Uvaias no meu quintal. E por isso me trazer a sensação de paz, harmonia e quietude que falta na cidade grande.
Escrevo esse texto em um final de tarde em São Paulo, onde hoje chegamos aos 34 graus e há pouco deu um trovão que fez o chão tremer como nas tempestades tão comuns no interior, dando-me uma certeza – realmente quero ter um canto com terra, árvores e mato, onde nesse pequeno porto seguro eu possa sentir todos os cheiros e sabores da minha infância…..ter uma mangueira carregada de manga coquinho ou Jataí, uma amoreira e vários Jerivás onde as maritacas venham fazer a festa, uma colmeia onde eu possa retirar o mel, uma touceira de Bambu Gigante onde possa colocar a mesa do almoço, pés de Ipê roxo e amarelo, onde o João de Barro fará sua casinha, cana para ser moída na hora, milho para o bolo e pamonha, e ali, bem do lado da casa, uns quatro pés de Gabiroba, para regar, ver florescer e frutificar, fazendo-me retomar o gesto simples da infância – colher e saborear, sentir aquele sabor adocicado das Gabirobas sempre que tiver vontade…
Querido Augusto, Linda historia também me emocionou… é bom olharmos a “simplicidade das coisas” desse mundão feito por Deus!!! Às vezes buscamos prazeres em viagens ao exterior e esquecemos de olhar para o que é nosso… com tantas riquezas e lembranças boas como as suas. Adorei!!!
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Comentário por Lucia Calderan — fevereiro 11, 2016 @ 17:41 |
Oi Lúcia.
Agradeço sua visita ao blog.
E já que gostou, se colocar no campo de busca a palavra “infância” encontrará outros textos que escrevi sobre o tema.
Bjs.
Augusto
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Comentário por Augusto Martini — fevereiro 12, 2016 @ 8:35 |
É Augusto, um simples picolé de Gabiroba me levou no meu tempo de infância em Pirassununga, e pelo visto levou você também a sua em Rio Claro. Mas é muito bom lembrar das coisas boas de nossas infâncias, e vendo seu post pela segunda vez viajei no tempo lembrando de outras coisas. Abs.
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Comentário por wanderleybongiovanni — fevereiro 11, 2016 @ 20:35 |
Oi Wanderley.
Não sabia que você é quase meu vizinho de cidade natal! Conheço Pirassununga.
Abraços.
Augusto
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Comentário por Augusto Martini — fevereiro 12, 2016 @ 8:28 |
Bom dia, Augusto Martini.Que bela recordação. Uma, de nossas, minha e dos meus irmãos, era “caçar” gabiroba no mato. Obrigada por dividir “simplicidades” tão boas de sua vida.Sucesso sempre.Maria Lins.
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Comentário por marialins araujo — fevereiro 12, 2016 @ 9:36 |
Oi Maria Lins.
Eu é que agradeço a sua visita ao blog.
Um abraço.
Augusto
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Comentário por Augusto Martini — fevereiro 12, 2016 @ 9:40 |
Olá Augusto, Saudações.
Só você mesmo, com esse teu jeito simples e especial de quem tem a sabedoria para apreciar as coisas boas e simples da vida. Seu texto me remeteu à infância, também muito pobre, mas muito feliz e cheia de boas recordações, e que dentre as muitas delícias dos campos em que brincávamos, estão registradas em minha mente a gabiroba. Grande abraço amigo
José Antonio/Jales-SP
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Comentário por José Antonio Caetano — fevereiro 12, 2016 @ 10:04 |
Oi José Antonio! É muito bom lembrar dos cheiros e sabores de nossa infância. Embora pobre e simples, mas feliz. Grande abraço. Augusto
Em 12 de fevereiro de 2016 10:04, A Simplicidade das Coisas — Augusto
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Comentário por Augusto Martini — fevereiro 12, 2016 @ 10:43 |
[…] você, lembra de algum sabor inesquecível de sua época de criança? Semana passada escrevi aqui sobre a Gabiroba. Outro sabor inigualável e difícil de […]
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Pingback por Lembranças de minha infância; os meus primeiros refrigerantes – Cerejinha e Tubaína! | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — fevereiro 17, 2016 @ 17:52 |