Na minha infância, final dos anos 60 e início dos anos 70, as modas e costumes do período da quaresma eram muito diferentes dos dias atuais. A Semana Santa era caracterizada por dias de seriedade, com tardes melancólicas, cinzentas, pesadas. Quase toda Sexta-Feira Santa chovia, havia um respeito e uma tristeza no ar, como se o tempo houvesse parado e todo o sofrimento de Jesus tivesse sido esparramado sobre a humanidade silenciosa. Não tínhamos aparelho de TV em casa, e no rádio só tocava música sacra ou clássica, com algumas transmissões religiosas e esperávamos pacientemente que o Domingo de Páscoa chegasse. Ah sim. Na Semana Santa não podíamos comer carnes ou beber leite e nem comer seus derivados. E minha mãe, na quinta para a sexta-feira, torrava amendoins no fogão a lenha e fazia a paçoca. Muitos homens não faziam a barba durante a quaresma. Os menos radicais não a fazia na Semana Santa.
Havia comemorações e celebrações religiosas em que toda a comunidade de Nossa Senhora Aparecida, a qual minha família pertencia. Morávamos na Vila Martins, em Rio Claro. Nessas comemorações os jovens e crianças também participavam. Lembro muito bem que a tradição católica da Semana Santa era uma coisa mágica, fantástica, inesquecível. Em Rio Claro presenciei celebrações da Semana Santa que marcaram minha infância. A procissão no Domingo de Ramos, que antecedia o Domingo de Páscoa era linda. E, na quarta-feira tinha a procissão do encontro. A Semana Santa era respeitada com silêncio e oração.
Na procissão do Encontro, o Padre Paulo fazia uma pregação, que era o “Sermão do Encontro”. A mensagem era carregada de emoção. Eu, ainda criança, chorava muito ao ver o sofrimento de Maria encontrando seu filho naquele estado de sofrimento. Muitos choravam.
Na Sexta-feira Santa, durante todo o dia havia um clima de respeito no ar. O comércio do bairro ficava fechado, eu e minhas irmãs não podíamos ouvir música, nem gritar, nem brigar… A casa também não era varrida. Nem o quintal. Nem a calçada. Enquanto isso na igreja de N. Sra. Aparecida era preparado o cenário. Na igreja lotada, todas as imagens dos Santos estavam cobertas com pano roxo. Um pano da mesma cor separava o altar e aguçava a curiosidade de todos. A celebração se repetia todos os anos, mas a emoção era sempre diferente. Lá fora, os atores se preparavam para representar o seu papel. Eram os apóstolos, a samaritana, Maria, Marta, Maria Madalena e muitos outros personagens que fizeram parte da história de Jesus. A Verônica era a Suzana, que era a nossa catequista e professora de canto. Os personagens ficavam escondidos pela cortina. Cada um tinha um pequeno texto sobre sua vida e participação na história de Cristo. O padre Paulo começava a cerimônia e em determinado momento a cortina se abria ao som das lanças dos guardas romanos batendo no chão e das matracas, que preenchiam o silêncio da noite. Atrás da cortina um cenário lindo e triste, com o Senhor morto, ladeado por todos os personagens. Imagem linda! Antecedia a isso tudo a procissão do Senhor Morto, ao som dos dobrados fúnebres tocados pela banda dos Ferroviários da Cia. Paulista de Estradas de Ferro. O ponto alto da cerimônia era encenado nas escadarias da igreja, quando a Verônica subia uma espécie de púlpito, e todos, com velas acesas, a ouviam cantar o beú (Oh vos omnes), enquanto desenrolava uma espécie de pergaminho, onde tinha gravado o rosto ensanguentado de Jesus, parecido com o vídeo abaixo. Era uma choradeira só!
Acompanhavam também o cortejo, os guardas romanos e os matraqueiros. O sábado de aleluia tinha a malhação do Judas, que ficava lá em cima, no pau de sebo e terminava com a vigília pascal que iniciava um tempo de alegria; e por fim, o Domingo de Páscoa que era naturalmente alegre. Ovos de chocolate nesta época não eram obrigatórios e a maioria das crianças os ganhavam de presente de seus padrinhos. Na maioria das vezes ganhávamos ovos de galinha, que eram fervidos em casca de cebola ou enrolados em papel crepom para que ficassem coloridos. E disso tenho uma história triste e engraçada. Em um domingo de Páscoa sentamos na calçada, junto com a Sandra, nossa vizinha, para comermos os ovos. E o da Sandra era de chocolate. A Tereza, minha irmã, em sua inocência, foi perguntar para nossa mãe porque o ovo da Sandra era preto e o nosso branco e amarelo.
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Que pena! Todas estas tradições estão acabando. Por exemplo, a semana santa para os católicos já não tem o mesmo sentido. Muitos só pensam no feriado e isso é o que importa. Também não veem nenhum problema em beber, se divertir e até mesmo “comemorar” a Sexta-feira Santa, quando celebramos a paixão e morte de Jesus. Longe de mim querer julgar, cada um tem a sua crença, mas, por exemplo, isso é incoerente para aqueles que professam a fé católica. É claro que argumentos e justificativas não faltam. Cada um tem a sua fé e politicamente falando, ainda bem que vivemos em uma democracia, não é mesmo?
Penso que as tradições religiosas trazem consigo valores morais e espirituais que vão muito além da religião em si. Seja qual for a sua religião, é muito importante o fato de existir uma referência, uma filosofia que leve em consideração o ser humano, sua relação com o outro, com a comunidade em que vive, que possa discernir e separar o ser humano das coisas materiais.
E você, o que lembra da Semana Santa de sua infância?
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Pingback por Fazendo arte na Páscoa! Ovos, por Ana Maria | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — abril 17, 2014 @ 14:21 |
Oi Gu
Ai que saudades da Páscoa na casa da vó Maria, da paçoca… hummmm.. A tia
Teresa sabe fazer né, me deu vontade de comer. Era tudo muito sério , hoje em dia não vemos mais , infelizmente.
Uma ótima páscoa a vcs. Um grande beijo. Saudades
Regiane
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Comentário por Regiane C. Christofoletti Gouveia — abril 17, 2014 @ 17:02 |
Oi, Augusto, eu me lembro da procissão exatamente como você contou aqui.
Os santos da igreja cobertos de panos roxos impressionavam muito as crianças.
Minha mãe e minhas tias faziam com que nós, as meninas, colocassem agasalhos grossos por cima dos vestidos, ‘por causa da friagem da noite’, mais roupa do que realmente seria necessário, um desconforto e uma feiúra só, você imagine. As crianças mais crescidas ganhavam uma vela num copinho para levar na procissão, mas quem ficou às ‘gargalhadas’ ou ‘na esganação’ na Quaresma acabava tendo que segurar a mão de um dos ‘pequenos’, o pior dos castigos para nós.
Eu me lembro ‘do bacalhau que ia chegar’, tanta conversa, eu cheguei a imaginar um ‘peixe vestido com uma trouxinha na mão’,como num livro de Monteiro Lobato, hahaha, quer dizer, chegar ‘na venda’ que era o mercado de um tio em Conchal. O quintal de casa nessa época ficava cheio de verdurinhas novas’ brotando, sempre tratadas com carinho, era assim que as crianças aprendiam a comer e apreciar de tudo um pouco, E um outro tio que vinha de Jundiái, de trem, com certeza, com a família toda, trazia goiabas do sítio próprio.
No sábado de Aleluia eu não gostava do barulho dos rojões e da ‘bagunça dos moleques’ malhando o Judas,todo ano mina filha caçula pergunta, como era mesmo ? Meu as tenho uma lembrança perfeita da minha mãe ‘podendo finalmente arrumar o cabelo’, eu me lembro até da música baixa tocando no rádio, o cheiro do laquê e da loção no rosto bem barbeado do meu pai, quando eles corriam para nos abraçar enquanto se arrumavam para ir ao ‘baile de Aleluia’.
Eu e minhas irmãs enchíamos uma caixa de papelão com jornal picado e deixávamos no portão para o Coelho da Páscoa. Lá no fundinho da caixa encontrávamos uma barra de chocolate ou um ovinho, eu acho, ou uns doces e balas, tipo aqueles caramelos da Nestlé, Alegria mesmo era ver a igreja cheia de flores, ver acender o Círio Pascal ou ‘a velona’, e conseguir cantar de cor as músicas da missa.
Na segunda-feira não havia aula, por um tempo era um dia chamado ‘Pascoela’, que agora não me lembro bem. talvez você ou tuas irmãs se lembrem,
Abençoados somos nós que conhecemos e podemos compartilhar o verdadeiro sentido da Páscoa.
Tudo de bom.
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Comentário por Simone Schmidt — abril 18, 2014 @ 16:51 |
Oi Simone.
Que lindo isso tudo que escreveu. Tivemos infâncias parecidas!
Bacalhau, para muitos, era quase impossível. Lembro que minha mãe comprava um peixe seco, acho que o nome era arenque, e que vinha em umas caixas de madeira. Tinha também uma sardinha salgada que ela comprava (outro dia as vi aqui em SP, no Mercado Municipal), as quais eram limpas e fritas. E só ela, com arroz e feijão, era uma delícia! Gosto forte que ficava na boca. Ainda me lembro.
As procissões eram lindas e emocionantes!
Boa Páscoa, minha querida amiga. E obrigado por compartilhar aqui as suas lindas lembranças.
Augusto
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Comentário por Augusto Martini — abril 19, 2014 @ 10:16 |
OI GU ,ME SENTI CRIANÇA OUTRA VEZ ,E COMO,SEMPRE A CHORONA AQUI SE DERRETEU, COM TODAS ESSAS LEMBRANÇAS, COITADA DA NOSSA MÃEZINHA IMAGINO COMO,DEVE TER FICADO O CORAÇÃO,DELA DEPOIS DE UMA PERGUNTA DAQUELAS NÉ, MAS DEPOIS, AS COISAS MELHORARAM UM POUCO E A GENTE COMEÇOU A GANHAR OVOS DE CHOCOLATE ,SERRA AZUL LEMBRA COMPRADOS NO ARMAZÉM. DO SR.
CAMPINA.,ERAM UMA DELÍCIA,PARA COMER BEM DEVAGARINHO ,PRA NÃO ACABAR LOGO, NÃO É MESMO?
DAS CELEBRAÇÕES TAMBÉM ME LEMBRO, ACHAVA TUDO MUITO LINDO E TRISTE AO MESMO TEMPO ,TEVE UM ANO QUE DEPOIS DA PROCISSÃO NOSSOS PAIS FICARAM CONVERSANDO COM OS PARENTES DO LADO DE FORA DA IGREJA,E NÓS FICAMOS CORRENDO E SUBINDO NOS BANCOS DE CIMENTO E PULANDO NO CHÃO ATÉ QUE EU CAI E QUEBREI O BRAÇO,FIZ UMA CHORADEIRA E LEVEI UNS PETELECOS,E FIQUEI COM O BRAÇO ENGESSADO UM BOM TEMPO.
OI SIMONE, TAMBÉM ACHEI LINDO TUDO QUE VOCÊ ESCREVEU,,GOSTARIA MUITO DE ME TORNAR SUA AMIGA,
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Comentário por amartini2013 — abril 21, 2014 @ 18:27 |
Oi Te! Não lembrava da sua queda e da quebra do braço lá nos bancos do jardim da igreja! Bjs. e saudades. Gu
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Comentário por Augusto Martini — abril 21, 2014 @ 19:09 |
[…] rua M-1-A o quarteirão era formado pela casa da “tia” Nica, sobre a qual já escrevi aqui no blog. Em seguida D. Diva, Sr. Alcides Barbi e os filhos Nenê e Clayton, depois o D. Cida, Sr. […]
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Pingback por Dia de finados e as lembranças da minha infância | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — novembro 2, 2015 @ 18:07 |
Republicou isso em A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini.
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Comentário por Augusto Martini — março 24, 2016 @ 15:02 |
Por que será, que quando crescemos, ficamos tão saudosistas? E quando estamos vivendo essas maravilhas, não percebemos que futuramente, guardaremos em nossa memória afetiva, doce lembranças. Infelizmente, nossos filhos e netos não terão essas histórias lindas para contar.
Meu pai, tinha uma fazenda na zona rural, na cidade de Moraújo/Ceará, chamada de Fazenda Diamantina, ficava mais ou menos, uns 293 km de Fortaleza, aonde morávamos. E toda Semana Santa, viajamos para lá, era uma delícia. Além de juntar a família (irmãos, primos e tios), nos deliciávamos com coalhada, cortada com um pires; era milho cozido e assado. Sem contar, que no sábado de aleluia era a vez do churrasco, de criações que meu pai mandava preparar. Tinha testamento de Judas e muita brincadeiras. Mas, na Sexta feira da Paixão, era dia de respeito e reflexão das dores que Jesus Cristo passou para nos salvar. Agradeço por compartilhar sua lembranças conosco. Abraço fraterno!!!
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Comentário por NORA PIRES — abril 10, 2019 @ 13:42 |
Boa tarde minha amiga. Essas memórias afetivas que guardamos ficam ainda mais vivas com o passar do tempo, não é mesmo? Tenho ótimas lembranças de quando passava alguns dias no sítio de meus avós. Obrigado pelo comentário e por visitar regularmente o blog. Feliz Páscoa para você e sua família. Augusto
Em qua, 10 de abr de 2019 às 13:42, A Simplicidade das Coisas — Augusto
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Comentário por Augusto Martini — abril 10, 2019 @ 13:55 |