Quando decidi que queria ficar em São Paulo, optei morar no centro. Comecei a procurar apartamentos. Visitei vários até chegar ao da Avenida Dr. Vieira de Carvalho, onde moro. A Trud, uma simpática moradora do prédio e que habita o sétimo andar há 50 anos, foi quem me apresentou o imóvel. Estava com as chaves, a pedido do morador e proprietário, o Sr. Délcio. Contou que o edifício foi construído por Adhemar de Barros. Todos os edifícios daquela calçada foram construídos por ele. E cada um dos 5 imóveis leva o nome de suas irmãs.
Trud me chama de “Augustus” e fala sempre com saudade da rua onde moramos. Diz que o Índio Caçador, escultura que vejo da janela do meu apartamento, foi encomendada em 1939. O artista e autor escolhido foi João Batista Ferri. A obra fica sobre um pedestal de 1,20 metros de altura e, retrata em bronze, o índio durante a caça, atividade considerada essencial dentre os costumes indígenas. Desde então, ele está ali, imponente, como que esperando uma caça que nunca vem, com os olhos fixos na Praça da República. Quando chegamos perto, vemos a perfeição da escultura – as veias do braço saltadas mostram o esforço empreendido. Parece que se colocarmos a mão dá para sentir o sangue correndo num corpo de bronze.
Segundo a Trud, nossa rua mudou muito desde a chegada dela ao lugar, em meados dos anos 50. A rua, antes um reduto dos barões do café e de bons restaurantes, aos poucos foi se degradando. Relembrando – falamos da Avenida Dr. Vieira de Carvalho. E o índio caçador, retrata em seu semblante um olhar que parece confuso, como se não entendesse as transformações. O olhar que deveria ser bravio, se olharmos bem, agora mostra certo medo, incertezas talvez…
A escultura já foi muito violentada nesses quatro anos e meio que moro ali. Muitas vezes desrespeitada, é escalda por manifestantes, sua base foi pichada… Também muitos a ignoram. Faz pouco mais de três anos que ela sofreu uma restauração… E novamente já picharam seu pedestal.
Mas, voltemos a falar um pouco da Trud. Ela tem 94 anos, veio da Transilvânia de Sibiu na Romênia, é muito lúcida, não depende de ninguém para nada. Pequena, franzina, anda, fala e pensa com a agilidade e rapidez de uma mocinha de dezoito anos. Sempre faz questão de dizer que os imigrantes deveriam devolver ao Brasil o que o país fez por eles, ao receber todos sem discriminação de raça ou cor. Não se cansa de falar das belezas do nosso país, de seu potencial, da gentileza de nosso povo, e diz que aqui tudo o que se planta dá. E até mais que uma vez no ano.
Fugida da Segunda Guerra Mundial da Romênia para Israel em 1950, ele chegou a São Paulo poucos anos depois. De Israel foi para os E.U.A. onde vendeu a passagem de avião dela e do marido e as trocou por passagens de navio, mais baratas. Pouco antes de sair de Israel soube que estava grávida. Abortou, por medo da situação de ser imigrante em um país desconhecido. Nunca mais conseguiu engravidar.
Ela e o marido fizeram de tudo um pouco. Trud trabalhou em uma fábrica de montagem de bonecas, onde colocava os cabelos no brinquedo. Seu marido parece que trabalhou com importação e exportação no final dos anos 50, quando quase ninguém se arriscava no ramo. Mas não tenho certeza disso. As informações que ela me passou foram um pouco vagas.
Trud é extremamente paciente e sempre abre um sorriso e, com sua voz mansa, fala em detalhes sobre sua vida. Diz que batalhou muito – ela e o marido – até conseguirem trazer a mãe e o irmão para morar em São Paulo. Os dois vieram, viveram e morreram no apartamento da Vieira. E até poucos meses atrás e depois de anos em espera, suas cinzas tiveram o destino final – foram guardadas em um cemitério. Estavam em duas urnas, juntas com uma terceira, que continha às cinzas do marido, em um lindo móvel no canto da sala esperando para descansar em paz.
Contou-me que no final da tarde do dia em que compraram o apartamento, recebeu uma ligação do cartorário pedindo que fosse com urgência ao cartório. Chegando lá soube que o marido havia morrido, vitima de um ataque fulminante do coração logo depois que assinou a escritura. Tinha apenas 46 anos.
Aliás, o marido foi o seu primeiro e único amor. Contou-me a seguinte estória e com lágrimas nos olhos: assim que chegou em São Paulo, teve ganas de assistir um espetáculo no Theatro Municipal. Um dia o marido chegou em casa com o jornal em baixo de um dos braços, como de costume. E disse-lhe: “Trud, coloque-se bem bonita com aquele seu vestido azul e o colarzinho de pérolas, pois vamos sair”. Foi uma grande surpresa quando chegaram à frente do Theatro Municipal. Ele retirou um ingresso que estava no meio do jornal e deu-lhe. O dinheiro havia sido suficiente para comprar apenas um bilhete. Quando indagado do que faria enquanto ela assistia ao espetáculo disse-lhe: “Estarei aqui, sentado na escada, lendo o meu jornal e te esperando. Vá!”
Quer prova de amor maior que esta?
Atualmente ela vive sozinha no apartamento de 120 metros quadrados. Não tem parentes no Brasil. Somente um primo de segundo grau que vive na Alemanha. Pouco tempo atrás chamou-a para morar consigo. Convite que abominou. Disse que detesta o frio!
Qualquer dia escrevo mais sobre a Trud, prometo.
Sim, claro, Trud merece mais que um post! O indio caçador tb! Convide-os para um champagne, aqui em casa! Adorei!
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Comentário por simone — setembro 28, 2012 @ 18:44 |
Boa tarde Simone!
Foi muito bom ter te conhecido! Com certeza nos veremos novamente. Não faltará oportunidade para bons papos, vinhos e um champagne!
Bjs.
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Comentário por Augusto Martini — setembro 29, 2012 @ 13:03 |
Cheguei por acaso, “an passant”, andarilha virtual em busca de referências estéticas para o lar que chamarei de meu….Mas depois desse amor de texto … desconfio que vou me aquietar por aqui e desvendar-te um pouco mais. Licença.
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Comentário por Estelita — setembro 6, 2013 @ 18:42 |
Olá, Estelita.
Boa noite! Fique a vontade! Leia, critique, sugira, aproveite…
Abraços.
Augusto
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Comentário por Augusto Martini — setembro 6, 2013 @ 18:46 |
[…] a Trud, uma imigrante Romena que até pouco tempo morava em meu prédio e que por lá viveu mais de 50 anos, a Vieira de […]
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Pingback por A Avenida Dr. Vieira de Carvalho, República, centro de São Paulo | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — março 28, 2014 @ 9:20 |
[…] e passeios festivos. Se você é leitor desse blog, vai se lembrar de um post que fiz sobre a Trud, minha vizinha romena. Ela é uma pessoa maravilhosa! Tem uma bela história para contar. Uma história composta e […]
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Pingback por Na velhice é o momento de retribuir o amor e tudo que aprendemos com nossos avós | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — abril 2, 2014 @ 16:46 |
[…] setembro de 2012 escrevi um texto sobre a Trud, minha vizinha romena que vivia aqui, no prédio onde moro. Quando ela e o marido emigraram para […]
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Pingback por Trud – uma imigrante romena de alma brasileira! Parte 2 | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — junho 14, 2014 @ 23:24 |
Adorei conhecer a Trud. Ela me faz lembrar o jeitinho da “vozinha” Virginia sempre com suas histórias pra contar… Beijos… Boa semana.
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Comentário por Rosana Christofoletti — junho 16, 2014 @ 9:27 |
Oi Ro! Boa semana para você também. Bjs. Gu
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Comentário por Augusto Martini — junho 16, 2014 @ 9:31 |
[…] quiser saber um pouco mais da história dessa guerreira acesse o post 1 e o post […]
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Pingback por Trud – uma imigrante romena de alma brasileira! Parte 3 | A Simplicidade das Coisas — Augusto Martini — maio 12, 2015 @ 17:53 |